segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Fantasmas Não Sorriem

Outro dia me alegrei ao constatar a felicidade de um amigo ausente, por uma foto que ele postou. Apesar de não ter remediado a saudade, seu sorriso aproximou-o de mim novamente. Me lembrei então desse texto que escrevi quando estava viajando:
Sou senão uma ausência herdeira da recordação, um fantasma. Se lembram de mim, são traços vagos sem que se perceba detalhes como o comprimento dos cabelos ou a cor dos olhos, que sabe-se, são verdes mas sem que se possa mirá-los. O sentido agora que mais se preserva é o cheiro como é geralmente a lembrança de nossos avós. Tento precariamente conservar-me concreto com meus textos e fotos. Entretanto, há a certeza de que o vago espectro invisível atrás das lentes - seja naquele bazar, naquela praça ou naquelas montanhas - está feliz. Isso talvez nos leve a aproximarmo-nos mais do que se nos pudéssemos tocar. Afinal fantasmas não sorriem.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Funeral Kalash (photos)

Oba, Um Cara Morreu
Sob o olhar muçulmano de Sagar, as cerimônias funerais dos kalash mais pareciam uma festa -  reunir as vilas, servir comida, tocar tambor, dançar.
Assim, quando, no jipe a caminho de Chitral, ele soube que um senhor havia morrido, falou-me com brilho nos olhos:
- Um cara morreu em Bumburait.
Constrangido com a alegria com que ele me dava a notícia e pela presença dos outros na carroceria do jipe, inclusive de vários kalash, respondi timidamente:
- Poxa.
- Você sabe o que isso significa, certo? – Seu tom de voz não disfarçava a exautação. Parecia, de fato, que tomávamos conhecimento de uma festa.
- Sei. – Monossilábico.
- Nós vamos, não?
Claro que iríamos, embora soubesse que não seria o “rock’n roll” ao qual Sagar me convidava. Minha motivação estava exatamente em esclarecer o que era realmente um funeral kalash. Haveria os tambores, a dança, a comida. O povo das outras vilas viria certamente prestar seus pêsames. Esses eram os fatos descritos por vários paquistaneses cujo paradigma religioso impedia de enxergar os destalhes que colocariam os acontecimentos dentro de um contexto completamente distinto. E foi em busca desses detalhes que dirigi-me ao funeral.
Funeral Kalash
Durante o período que passei nos vales Kalash, cerca de um mês, não me recordo de ter visto alguém triste. Pode-se esperar de um povo extremamente desapegado, tolerante e acostumado a uma vida árdua, que não se abata fácil. Entretanto, parece também haver um certo tabu com relação à tristeza, quase como se fosse vista como algo obsceno.
Assim quando alguém morre, lamenta-se a perda mas também celebra-se a vida. As pessoas cantam e dançam ao redor do corpo. Os tambores tocam lentamente enquanto as mulheres soltam um doloroso murmúrio e, abraçadas, balançam de um lado para o outro. O toque do tambor então acelera-se, os homens começam a gargalhar estrondosamente e os anciãos dançam erguendo bengalas como que desafiando a morte.
- Agora é tarde demais. Mesmo que você venha me buscar. - Parecem dizer com seu gesto. A vida plena e alegre que levaram, representa sua vitória sobre ela.
As outras vilas vêm juntar-se a cerimônia e a família mata umas tantas cabras para receber devidamente o povo.
Obviamente não torci pra ninguém falecer mas confesso que estava curioso. E aconteceu de um senhor falecer em Bumburait dando-me oportunidade de presenciar esse estranho velório.
No decorrer dos acontecimentos, muita gente aproxima-se do corpo para levar uma última prosa com o sujeito. Na minha opinião, um pouco tarde demais.
Resolvi de qualquer forma, fazer o mesmo. Aproximei-me, me apresentei e tive com o defunto o seguinte diálogo:
- Oi, meu nome é Bruno e venho do Brasil. - partindo do pressuposto que essas seriam suas primeiras perguntas - Não sei se seria adequado dizer "muito prazer", considerando as circunstâncias. Entretanto, embora esses costumes sejam completamente estranhos a minha cultura, acho tudo isso muito lindo e compreensível. Normal que a família sinta-se triste diante de uma saudade agora irremediável. Mas para mim, frente à morte, faz mais sentido celebrar a vida do que chorar sua inevitabilidade. Quem tem mesmo a lamentar são essas pobres cabras que hão de juntar-se a ti. Com licença, agora vou dançar...enquanto a Vida me permite.

Kalashis velando o corpo na Gestakhan, a casa dos rituais.

Mulheres kalashi dançando e chorando ao redor do corpo.

Chapati que será distribuído para as pessoas presentes no funeral, junto com carne e uma espécie de sopa feita de banha e farinha.

As mulheres da família passam praticamente todo o tempo junto a cama onde repousa o corpo.

Certas comidas é melhor não saber como são feitas. Chapati, sopa de banha e nacos de carne cozida.


A carne para os presentes na cerimônias. No caso deste funeral, 15 cabras foram mortas, uma despesa considerável para a família do falecido.



No segundo dia do funeral, o corpo é colocado ao ar livre. Durante todo o dia as pessoas tocam tambor e dançam. A música consiste numa parte lenta como uma lamentação ou um canto de despedida e uma parte frenética, quando os homens riem alto enquanto dançam.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Produto Banal (Pequim)

O choque entre Paquistão e Pequim foi enorme. Aliás, o choque cultural que uma fronteira pode causar é impressionante, principalmente se a imaginarmos como uma linha, muitas vezes, apenas imaginária. Não foi diferente entre Irã e Paquistão, quando atravessei a pé os portões escancarados, procurando entre aquelas casas paupérrimas espalhadas de forma completamente aleatória quem estamparia meu passaporte. Havia deixado a ordem neurótica para mergulhar no caos generalizado. Entretanto, Paquistão e China tinham uma diferença menos evidente mas mais aterradora. Não a notei com clareza em Xigiang, a província que faz fronteira com o Paquistão. Ali não havia muito de China, considerando que o povo muçulmano pertence a uma raça de traços e tradições distintos, chamada uigur. A verdadeira China manisfetou-se em Pequim para onde voei ao sair de Kashgar. Dessa vez a hospitalidade comovente paquistanesa dava lugar à frieza de um país onde há pessoas em demasia. Assim como um produto extremamente banal, a vida perdeu seu valor.